Criação conjunta de Ana Mondini e Luis Artur Nunes. De acordo com Morgada Cunha, um dos primeiros espetáculos a introduzir a dança teatro em Porto Alegre.
Nos anos 70, em Porto Alegre, eu, que desde sempre havia sido um homem de teatro (ator, dramaturgo, mas principalmente encenador), me apaixonei pela dança. Passei a fazer aulas diárias de ballet clássico no estúdio da saudosa e maravilhosa Maria Amélia Barbosa, no comecinho da 24 de Outubro. Lá conheci Ana Maria Mondini, a “Aninha”, bailarina formada pela escola de Marina Fedossojeva, que fazia aula conosco. Aninha também ministrava um curso de jazz, que igualmente passei a frequentar. Dali nasceu uma amizade.
Eu percebia nela, não só a excelência da bailarina, mas também a criatividade (era coreógrafa também) e uma qualidade “teatral” na suas performances. Propus-lhe que criássemos em parceria um espetáculo de dança-teatro, ela se responsabilizando mais pela parte da dança e eu pela do teatro. Trabalhamos juntos no estúdio de Maria Amélia e criamos uma sequencia de “números”. Uns eram feitos de movimento puro, abstrato, sem emotividade explícita nem temática ou história. Entrega ao puro deleite do movimento em cena. Naturalmente criamos, para eles, partituras acabadas e com muita interação. Alguns números eram realizados pelos dois, outros eram solos meus ou dela.
Um dos meus solos, chamado “Acumulações”, era um proposta conceitual que eu havia “chupado” de Trisha Brown, uma das papisas da dança pós-moderna americana, que eu havia conhecido em meu período de estudos em Nova York. Consistia na seguinte fórmula: Eu executava um movimento e então repetia-o, acrescentando um novo movimento. Repetia os dois e acrescentava mais um, e assim por diante até compor uma coreografia completa, também totalmente abstrata e desprovida de emocionalismo.
O solo de Aninha era um número de dança jazz, criado por ela, e performado com efervescência e graça. Em um outro solo meu, eu dizia um poema de Jacques Prévert (“Como pintar o retrato de um pássaro”), ilustrando-o com elaborada pantomima. Entre os números a dois, fazíamos um exercício do que eu chamava de “coreografia teatral”. Era o “Sonhos de uma Virgem”. Ao som de trechos de uma das sinfonias de Mahler, “dançávamos” uma sequência de movimentos “dramáticos” que contavam uma história, com personagens, enredo, conflito, reviravoltas, clímax e desfecho, tudo muito melodramático (o que possibilitava a execução “dançada”) e sem muita lógica realista.
Num outro número a dois, eu dizia uma série de sonetos: um de Góngora, um de Camões, um de Ronsard, um de Dante e um de Shakespeare. Eu os recitava nas línguas originais (Não foram poucas as acusações de esnobismo e hermetismo). Eram poemas românticos, poetizando inicialmente a beleza da mulher e, a seguir, a sua decadência física e morte. Ana Mondini coreografou cada um deles com movimentos ilustrativos, explorando o intenso lirismo e emotividade dos sonetos.
Portanto, havia momentos mais teatrais e momentos mais dançados, mas todas as “partituras” dos movimento eram executadas com extremo rigor, numa busca pelo virtuosismo.
Os números foram criados por nós. Mas lá pelas tantas, nos ensaios, sentimos necessidade de um olhar de fora que nos auxiliasse nas questões de encenação propriamente dita. Convidamos então, Nara Keiserman, amiga e profissional de teatro, mas que tivera uma formação de muitos anos de dança. Ela, assim, passou a assinar a direção do espetáculo. Os figurinos eram de Mara Pasquetti e a iluminação, de José de Abreu, que também se encarregou da produção.
O espetáculo, estreado no Teatro de Arena, foi bem acolhido pelo público e pela crítica, que exaltaram a sofisticação da proposta e a beleza da execução. Mas também, criou-se uma certa polêmica quanto ao “é dança, não é teatro”. A ponto de que o então SNT (Serviço Nacional de Teatro), ter hesitado em considerá-lo apto a receber patrocínio e participar da popular “Campanha das Kombis”. Graças aos esforços do Zé, fomos aceitos. Os muxoxos, porém, não foram poucos.