Filha de Oyá e neta de Luiza. Multiartista, africanista. Faz parte do Ylê de Oxum e Ossanha do Quilombo Família de Ouro. Escritora com produções contemporâneas em gêneros especulativos, como a ficção científica, o horror e a fantasia, publicou o romance "Sentinela", Editora Malê. Slammer, pesquisadora, cientista afrofuturista e ministrante de oficinas. Bailarina do Grupo de Músicas e Danças Populares Andanças; do Centro de Formação La Negra de flamenco; da Cia Afro-Sul Ọdọmode e do grupo de dança Nossas Origens. Doutora em Comunicação Social (PUCRS).
Procedimento : conjunto de técnicas e métodos pelos quais alguma coisa é feita. Modo e processo , efeito de um movimento de ação que parte de um início e se desloca para um lugar outro . Procedimento é ato , atitude em movimento . O desenrolar de Procedimento # 6 ( que implica em repetição , na existência de processos anteriores ) tem como abrigo o Teatro Oficina Olga Reverbel que comporta diferentes composições de arquibancadas , ou seja , a disposição entre atores / bailarinos e plateia muda de acordo com a produção . Tal aspecto dialoga diretamente com a proposta de Procedimento # 6 por suas especificidades de interação entre atores e espectadores - participantes .
Adentro o Teatro Oficina , tateando às escuras um assento no canto direito , longe da porta . Avisaram ainda na fila que depois que o espetáculo iniciasse , ninguém poderia entrar , por questões logísticas da produção , justificativa que já tomou meus pensamentos e me acompanhou no com licença e empurra cadeira pra passar até meu lugar .
O que eu via de relance no cenário começa a tomar forma : um grande biombo branco e translúcido aos quais minhas antenas de cientista nomearam de caixa scifi por remeter a imagética de uma cápsula , aeronave , máquina do tempo . Em cena Jackeline Mourão com um maio branco recortado em faixas a encarar um ponto fixo, lembrando a personagem Leelo do filme de ficção científica Quinto Elemento ( 1997 ) .
Em passos firmes e espaçados de tênis branquíssimos , a caminhada da bailarina começa , junto da tela ao fundo do palco que passa a mostrar a plateia , numa surpresa agradável de entender que a mesa que eu havia visto no canto e julgado como de luz e som , na verdade também era uma espécie de torre de captação que refletia em imagem a cada um de nós .
Aí eu já estava tomada pela narrativa , sentando na ponta da cadeira projetando o corpo pra frente a fim de tentar apreender o que mais naquela imersão especulativa meu olho não havia captado . Não existia mais o produtor audiovisual Reginaldo Borges sentado na mesa de captação , mas o piloto , engenheiro do tempo e espaço em movimentos articulados de vigilância, controle e provocação . Não existia mais a bailarina Jackeline Mourão , com seu cabelo preso em três coques verticais , era a humanoide com cabeça de esferas que tentava escapar de seu destino , em embate e assimilação visceral do humano e tecnologia .
Em passos firmes , a humanoide caminha , acelera e de algum modo se expande para além do corpo . Pelas beiradas , em processo gradual de movimento , projeção , luzes e sonoridades , a atmosfera se instaura . A expectativa lateja para vê - la entrar na caixa .
Quando seu corpo passa a fazer parte orgânica do material tecnológico , este passa a ser movimento também , em faixas de luzes que descem e sobem , interagem e instigam , em movimentaçges , intermitentes de ordem e caos . O corpo da humanoide atua como receptáculo , num jogo de perguntas e respostas em camadas de velocidade , espaço e tempo . O espetáculo é quase palpável pelo frenesi de ruídos , silêncios , repetições , compassos e ritmos .
O olho se adapta a um padrão visual para em seguida ser confrontado com uma rápida mudança de luzes , em dado momento a humanoide se multiplica , interagindo com duplos de si projetados na tela . Quando o ouvido se acostuma aos bipes e toques , aos quais a humanoide responde mudando de direção e eixo , com rolamentos e deslocamentos uniformes , logo vem a quebra com o ruído ou mesmo o silêncio , atiçando o desconforto . A oscilação faz parte da espectatorjalidade , onde os sentidos são constantemente provocados por estímulos externos .
Há uma linha base narrativa da bailarina que transita na dança contemporânea , jazz e danças urbanas interagindo com as projeções e a estrutura do biombo . Há nas entrelinhas camadas de interpretações , mobilizadas pela disfarçada simplicidade de somente um corpo no palco com um objeto cênico . Mas nesta jornada , o que parece que se é , talvez e provavelmente não o seja , ou também o possa ser , depende do olho que observa , da câmera que vigia , da projeção que empurra e puxa .
Por suas ondulações , quebras e simetrias , com o uso de múltiplas tecnologias e mídias , posso dizer que esta obra é um espetáculo transmídia que alude a reflexões sobre a tecnologia e a humanidade . Testemunhamos em espectatorialidade
participativa uma luta continua que se permeia em dança e ora se estabelece em fuga de um Procedimento # 6 que é uma provocação sinestésica - existencial .
Quando a púrpura tomou o solo sagrado, pude sentir no peito o início do maior espetáculo da Terra. Trajando sua coroa no ressoar do cavaquinho, o intérprete condutor da obra a porvir cantou:
Negro, sou feito de barro, de fé e agruras
Talhado no tronco cruel da tortura
Me fiz na alforria a cor do Brasil
Do público ecoaram os gritos daqueles que como eu não disfarçam o sentir coletivo de pertencimento, bradando a uma só voz: a minha escola tem que respeitar!
No primeiro vislumbre dos que fazem a frente, abrindo caminho para o desfile, meu corpo já vibrava junto à emoção que só sente aquele que um dia esteve atrás da faixa amarela, com a responsabilidade na garganta de representar um ano intenso de trabalho e um legado de centenas de pessoas que viram madrugadas costurando, colando e dando jeito, pra botar pra rua o que se tem de melhor.
Quem pisa primeiro na avenida, não à toa, é aquela cuja missão de levar a herança da dança afrogaúcha corre no sangue: a coreógrafa Edjana Deodoro. Capitaneadas por ela, em movimentos de contração de tronco, as bailarinas da comissão de frente simbolizam a orixá Nanã. Representando a Senhora da Criação, seus braços embalam em ondas, levantando as mãos em odes ao céu, girando em expansão.
De pés descalços em conexão com a terra, elas se deslocam e se agrupam, trazem consigo um bebê negro, erguido para as arquibancadas representando a vida. Da simbologia de Nanã, de vida e morte, faz lembrar da mestra Iara Deodoro, criadora do Afro-Sul Odomodê, ponto de cultura que foi tema da escola em 2024. Dentre suas muitas marcas na história da dança em Porto Alegre, a participação da juventude sempre se fez presente no palco, fosse as crianças dos projetos socioculturais do instituto como dos filhos dos bailarinos. Iara Deodoro, referência na dança brasileira que nos deixou no último ano, no dia de Cosme e Damião, permanece viva nesta comissão.
Os pés dos bailarinos em constante diálogo com o chão cumprem os deslocamentos arquitetados para ocupar em extensão. Há a inconfundível mobilidade da cabeça que acompanha o movimento natural do corpo junto à potência dos quadris que desenvolve uma construção coreográfica que faz jus à tradição de comissões de frente que dançam todo o desfile. Com sincronia, evolução, domínio espacial da avenida e a indispensável expressão que canta o samba na dança, a comissão é mais que carta de boas-vindas da escola: é um convite para a imersão na história vivida e sonhada pela resistência negra.
Logo atrás, o trovão: da porta-estandarte em tons de cinza, com tecidos esvoaçantes a se mover em círculos traz a fúria do céu nublado, dos relâmpagos das chuvas que introduzem o próximo ato. Digo ato, porque vejo diante de um espetáculo épico, com arcos narrativos que apresentam uma história ao longo do tempo, trazendo tanto as referências das culturas negras, quanto o retrato de uma terra ferida e a conseguinte resistência daqueles que a sociedade empurra para a margem.
Barcos navegam o mar de lama no carro abre-alas, com atores e atrizes de Porto Alegre com suas lanternas a interagir com o público representando os inúmeros voluntários que trabalharam nos resgates durante a tragédia climática. Vejo no carro a cidade submersa nas águas em tons de marrom, feito com roupas e tecidos marcados pelos lamaçais das enchentes de maio de 2024. O cavalo caramelo, símbolo de resistência durante o período, também é representado no mesmo carro, assentando um enredo que de formas diversas trata sobre memória.
Há uma ala de enormes girassóis ressecados e escuros, representando a flor murcha submersa no cenário de devastação, em contraponto a ala de baianas a lembrar o arco-íris que denota os raios de luminosidade. O arco-íris só é possível pela ponte entre o sol e a chuva, em metáfora que traz a dicotomia entre o que se perdeu e o que pode vir a ser. Friso a ala do arco-íris, justamente pela renovação ser protagonizada pelas baianas, que representam a história da escola e também a sabedoria de quem vive o carnaval há muitos anos.
Vem então um horizonte de boas novas, o amarelo vivo da bateria que reverbera em meu peito e me faz lembrar de Dorival Caymmi que alertava que quem não gosta de samba, bom sujeito não é. É impossível não sentir emoção diante de uma bateria inteira a tocar em união a sua verdade. No coração da escola se define o andamento, a energia pulsa em cada passo, da caixa ao tamborim guiando cada corpo entregue ao desfile.
A justiça de Xangô e a luta por terra e território está presente nas demais alas, em uma crítica ao cenário de especulação imobiliária que violenta os povos e comunidades tradicionais, no racismo ambiental agravado no período de enchentes.
No último carro, meus olhos desaguam ao ver Oxum, Iemanjá e Oxalá, os orixás das águas, a encerrar o desfile junto da velha guarda e lideranças quilombolas, com destaque a Mãe Paty de Oxum, Personalidade do Ano do Açorianos da Dança em 2023 e fundadora do grupo de dança Nossas Origens, que manteve um abrigo quilombola no cenário de enchentes.
O belo desfile alcança o êxtase no sentimento mobilizado de que é possível se reinventar. Em meu lugar de observadora e crítica, só posso reverenciar o espetáculo que vi, que contempla e transborda conceitos considerados fundamentais pela teoria científica da dança. Que transborda porque ultrapassa em excelência e presença, traduzindo em uma hora a dedicação de uma vida inteira.
Do maior espetáculo da Terra, posso dizer que o maior palco do mundo é o sambódromo. Do samba que emociona, com olhos marejados, vejo a coroa com o punho negro a me dizer que o Carnaval é também aquilombamento. Da herança afro-brasileira, vejo renascimento. Uma ode à arte que além de apresentar um espetáculo de artes cênicas em sua magnânima potência, reforça a premissa de que não se faz nada sozinho.
Dessa lágrima de luto
Conservada pela terra
Eu renasço feito fruto
Mais um Silva nesta selva