Duda na verdade não é Eduarda, e sim Ana Carolina. Além de um pouco esquisita (ainda bem!) Duda também é artista, autista e... bem, tem dificuldade de se apresentar.
Estudante do curso de Dança da UFRGS, aluna do Grupo Experimental de Dança no ano de 2021, bailarina gótica nas horas vagas.
Quanto tempo é necessário para deixar uma ideia (ou um texto) amadurecer?
Me fiz essa pergunta pois estava sendo consumida pela culpa. Culpa por não ter escrito antes, culpa por demorar demais, pensar demais. E depois de uma espiral de pensamentos autocríticos e provavelmente disfuncionais, me respondi: o que importa não é quanto tempo demora, mas o que fica registrado na memória depois do tempo ter passado.
Na noite de 22 de maio de 2025, fui assistir ao espetáculo Aptá, do Coletivo Esparrama! (MG), parte da programação do 19° Festival Palco Giratório POA. O teatro Túlio Piva estava cheio, movimentado, o que me surpreendeu naquela noite tão fria em Porto Alegre, com ventos gelados cortando a Rua da República.
Ainda lembro de como estava bonito o palco quando cheguei para sentar na platéia. A cortina estava aberta, com vários elementos dispostos em cena: carrinhos e caminhõezinhos enfileirados pelo chão, brinquedos suspensos no ar fazendo rodopios e a presença imersa neste cenário do dançarino Bernardo Godim, que brincava atipicamente por entre todos estes objetos.
O espetáculo traz a relação de três gerações da mesma família: avô, pai e filho. Manoel, filho de Bernardo, é um menino autista. O pai de Bernardo, falecido durante o processo de criação do trabalho, também apresentava certa atipicidade de comportamento, embora não tenha recebido algum diagnóstico formal. O mundo da neurodivergência é explorado com ludicidade e sutileza, trazendo a própria relação de Bernardo com seu pai e seu filho como inspiração.
Como mulher autista, não deixei de me colocar no lugar de observação mais próxima daquilo que aconteceu no palco, aquele brincar e agir atípico. As rodinhas dos brinquedos que passam pela pele, trazendo diversão através do estímulo sensorial tátil, o enfileirar e bagunçar e enfileirar de novo todos os carrinhos, a alegria de poder fazer e desfazer a ordem, brincar de observar… Um faz de conta diferente, um outro mundo, outro olhar, mas que não está isolado, que pertence e convida.
E o convite é literal quando Bernardo entrega o brinquedo favorito do filho (informação que ele trouxe no bate papo após o espetáculo) para que nós, a platéia, pudéssemos brincar também, além de demonstrar possibilidades de como brincar. Durante o espetáculo, o que vemos não é uma representação imitativa de um indivíduo autista, ou um discurso sobre questões que tocam este universo, mas sim um convite singelo a compartilhar sensações e impressões que fogem do padrão.
Quando se fala em autismo a gente quase não pensa no corpo. A gente fala da mente da pessoa autista, frequentemente. Mas todo comportamento se dá no corpo, seja ele típico ou atípico. Aptá é um espetáculo de dança-teatro que nos convida a observar o corpo sob o olhar atípico, a pensar as relações geracionais através do que é passado através do movimento, seja na brincadeira do filho ou na dança flamenca do pai. O movimento acontece junto com a passagem do tempo, enquanto o espetáculo nos leva da infância à velhice.
E o espetáculo que iniciou com a leveza da brincadeira se encaminha para o fim com a força e maturidade necessárias para segurar dois grandes galhos que Bernardo porta enquanto gira pelo palco. Esta cena produziu imagens em sombra muito bonitas, o que me causou leves arrepios. Quando saí de casa eu sabia que provavelmente me emocionaria vendo este espetáculo, e não me enganei.
Ainda mais emocionante foi ver a reação de algumas pessoas da platéia, durante o bate papo que aconteceu após o espetáculo. Mães de crianças atípicas relataram como o espetáculo conseguiu captar a realidade que elas vivem com seus filhos e trazer acolhimento através disso. Houve perguntas curiosas sobre o espectro autista, mas também muitas perguntas sobre o processo de criação em si. Foi bacana descobrir as referências artísticas vindas do pai de Bernardo, que também dançava, além de saciar minha maior curiosidade: porque o nome Aptá? A resposta era simples, mas eu nunca adivinharia que era assim que Manoel, o pequenino, referia-se a si próprio. E o nome pegou.
Aptá trouxe um quentinho no meu coração naquela noite fria de maio. Trouxe uma aproximação do tema da neurodiversidade mas sem grandes e pesados discursos. E às vezes é disso que a gente precisa também, algo leve, algo gentil.
Mas afinal, ao que se propõe uma crítica de dança? Tenho me feito esta pergunta, e assim como na maioria das outras perguntas que me faço, tenho encontrado não uma e sim múltiplas respostas. Porém, não é minha intenção aqui tentar oferecer todas elas (coisa que não é nem possível).
Aqui me proponho a arriscar cometer uma crítica. Antes, quero apontar algumas direções, talvez para que eu mesma as siga e não me perca, como nuvem passageira. Meu olhar sobre o trabalho “Aos Pedaços”, dirigido e coreografado por Airton Tomazzoni, não busca descrever com precisão o que meus olhos foram capazes de enxergar, nem apontar teorias narrativas que explicam as cenas (embora deva admitir que sim, criei algumas). Busco nomear as sensações e mergulhar nos pensamentos despertados nos pouco mais de 40 minutos de apresentação, assistida por vídeo, já que infelizmente eu era apenas uma garotinha de 8 anos na estreia do espetáculo, 20 anos atrás. A partir disso, também quero trazer uma breve provocação, mas deixemos isto para o final…
Despertencimento de si, do mundo. Desmembramento. Foram as palavras que dançavam na minha mente junto com o corpo alto do bailarino em cena. Um corpo que, ao se olhar atentamente (e pela segunda vez) percebe-se ter gravado nos músculos um grau elevado de técnica clássica, o que não o impede de tentar expurgar tal postura com movimentos que oscilam do lento ao frenético, formando figuras levemente macabras. Ele é embalado pela frase “eu sou só”, que reverbera tanto em seu corpo que dança quanto na sala do apartamento em que dança. Sim, eu escrevi certo, do apartamento, não do palco ou teatro.
O um se torna dois e uma mulher entra em cena. Sentados em cadeiras, seus corpos dançam quase como em um delírio compartilhado. A mulher de cabelos longos e negros mexe-se convulsivamente ao lado do homem paralisado. A tensão criada coreograficamente entrega uma cena digna de filmes de suspense e terror. Ao que o tempo passa, os corpos dançam e pouco se tocam superficialmente. A sensação é a de uma conexão obscura que os move, capaz também de tocar as entranhas de quem os assiste.
Pertencimento a si, prisão no mundo. A mulher cessa os movimentos e permanece no chão, com o corpo tão enrijecido quanto a própria alma. Do silêncio surge o canto que pede “para deixar ir”, porém a cabeça pesada presa a terra não permite a mulher se levantar, criando uma dança suspensa em cordas invisíveis. Pedaços de carne passageiros são o que costumamos chamar de corpo, mas aquilo que não é efêmero como a carne parece atormentar-se presa nela, momento que parece ser transcendido em movimento, numa das coreografias mais belas que já assisti.
Impossível não compartilhar minha empolgação com a trilha sonora de todo o espetáculo. Para além de meu gosto pessoal, que foi muito bem atendido, cada música criou um misto de sensações como agonia e deslumbramento, preenchendo a cena junto com os corpos dançantes. A trilha inclui canções que iam do metal a cantigas brasileiras, mixagens e eventuais badaladas de sinos, trazendo mais camadas de significados para a coreografia sem a sobrepor.
“Aos Pedaços” é um daqueles trabalhos que vai ficar na minha lista de coisas reconfortantes para reassistir, assim como muitos filmes, séries e animes que gosto. O espetáculo, apresentado em 2004 na sala do apartamento do próprio diretor e coreógrafo, foi gravado e após 20 anos continua “despedaçando” discussões atuais. Não é de se esperar menos de um espetáculo que recebeu o Prêmio Açorianos de Melhor Produção de Dança, que ainda reverbera no novo e antigo público, duas décadas mais tarde.
E aqui, por último, mas talvez mais importante, quero deixar a tal da provocação citada lá no começo… O que falta para a dança estar nas listas de “coisas para assistir no final de semana” ou até mesmo sendo comentada naqueles canais do YouTube que fazem resenhas e críticas sobre diversas obras artísticas? O que falta para começarem a aparecer pessoas que não estejam atuando na área da dança compartilhando nas redes sociais seu “top 3 espetáculos de dança que assisti em 2024”, assim como vemos com livros ou jogos? Com certeza, não é a falta de ótimos trabalhos em dança, capazes de nos absorver e nos fazer maratonar uma temporada inteira na mesma noite. “Aos Pedaços” é prova disso, capaz de entreter desde admiradores da dança até amantes do terror. Então, o que falta?
Enfim, sigo com muitas perguntas, e sem intenção de encontrar uma única resposta.