Priscila Ferraz Pasko (1983 – Porto Alegre) é jornalista cultural, graduanda no curso de Bacharelado em História da Arte (Ufrgs) e escritora. Estuda e pesquisa desde sempre.
Busca respostas do mundo e de si, por isso, procurou algumas delas no corpo. Em 2020, integrou a turma do Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre (GED), experiência que a levou aos experimentos em videodança e à dança contemporânea.
Flerta com a teoria e a pesquisa em artes. Dança filosofando e pensa que deveria dançar mais.
Como elaborar um trauma coletivo sem precedente, como as enchentes de maio de 2024? Para aonde vão as águas que ainda não escoaram de dentro de nós? Bom, talvez não seja uma questão de escolha, mas de uma premência do corpo. Foi justamente a este chamado, o da matéria, que a Cia Municipal de Dança de Porto Alegre atendeu, com a apresentação do espetáculo Coração encharcado e ainda assim..., no dia 25 de novembro, como parte da programação do 31o Porto Alegre em Cena. Airton Tomazzoni e Carlota Albuquerque assinam a direção.
O palco escolhido para a encenação não poderia ser mais emblemático: o estacionamento do Centro Municipal de Cultura Lupicínio Rodrigues, que, se em certo momento da calamidade serviu de refúgio a centenas de desabrigados que ali chegavam, noutro, se convertia como mais um alvo das águas, tendo parte de suas dependências também alagadas.
Antes mesmo do espetáculo começar, no estacionamento, à esquerda do público, uma imagem dispensava qualquer tipo de mediação. Ali estavam sobrepostas as poltronas que ficaram submersas na água durante semanas dentro do Teatro Renascença. Uma espécie de queloide composto por metal, espuma e mofo.
As escolhas cênicas do espetáculo tiveram o mérito de comunicar situações, cenas e elementos iconográficos da tragédia, como baldes, garrafas de água mineral, lava-jato, colchões ou ainda barcos de papel. Por sua vez, a coreografia decodificou os gestos que ficaram registrados na memória de quem vivenciou a enchente. A bailarina Paula Finn, no terraço do teatro, a jogar água de um balde em direção ao chão; a corrente feita de camisas brancas e seus braços suspensos, em uma referência ao acolhimento dos resgatados no bairro Mathias Velho, em Canoas; as fotografias perdidas entre os cabelos da bailarina Marina Sachet.
Não há em Coração encharcado e ainda assim… qualquer traço de autocomiseração, um caminho bastante acertado. A raiva, tão abstrata, ganhou corpo nos movimentos dos bailarinos. Inclusive, tive vontade, em mais de uma ocasião, de me juntar ao grupo e também jogar os tonéis ao chão, sacudi-los, machucá-los com alguma ferramenta, arrancando o seu som metálico, que era meu também. Catarse.
A trilha sonora (Driko Oliveira) não poderia deixar de ser mencionada, já que é um indispensável elemento que empresta o tom do espetáculo. Destaco o momento em que um trecho de Loucos de cara, interpretado por Vitor Ramil, (vem/ anda comigo pelo planeta/ vamos sumir), é executado durante poucos segundos, baixando o vigor da cena, para logo ser cortada de forma abrupta por uma música eletrônica. O respiro é necessário, porém, breve. Não há tempo, nem para aonde fugir. O enfrentamento é aqui e hoje. O próprio título do espetáculo indica insubmissão diante da escolha da conjunção aditiva e em ...e ainda assim, e não da conjunção adversativa mas ainda assim.
Aos poucos, sou conduzida ao delírio das águas, à confusão, ao conjunto de cenas e informações surreais, assim como naquele mês de maio. Coração encharcado soube se apropriar disso quando o bailarino Caleo Alencar assume a figura de um jacaré e escala as grades do estacionamento do Centro Municipal de Dança, “interrompendo” o espetáculo e surpreendendo o público. Extravagante, o jacaré ocupa o papel de mestre de cerimônia, acompanhado por uma trilha sonora desconexa, assim como suas atitudes. A espetacularização do absurdo em meio à tragédia.
É um desafio e, provavelmente, impossível dar conta em um único texto das diversas camadas que Airton Tomazzoni, Carlota Albuquerque, bailarinos e demais integrantes da equipe técnica imprimiram no espetáculo. Cada uma delas (a trilha sonora, a coreografia, a cenografia, a dramaturgia) tem potencial para se desdobrar em análises que merecem aprofundamento a partir da sua perspectiva.
De minha parte, fica o registro de que o corpo não esquece as memórias e ainda assim dança.