Um dos mais importantes espetáculos da história da dança de Porto Alegre, um marco do final dos anos 1980, o espetáculo da Terpsí Cia de Teatro e Dança teve participação destacada no Carlton Dance Festival, o mais importante festival da área à época.
Quem é ? foi uma das mais importantes produções de dança de Porto Alegre, afirmando o nome de Carlota Albuquerque como coreógrafa e projetando a Cia nacionalmente. A obra foi decisiva para consolidar um cenário contemporâneo para a dança na capital.
Direção e Coreografia: Carlota Albuquerque
Assessoria técnica e artística: Eneida Dreher
Elenco: Angela Spiazzi, Betine Alves, Cintia Cveigorn, Silvia da Silva, Leta Etges, Lourdes Laybauer e Luciane Coccaro, Cláudia Schwartz
Participação especial: Geraldo Lachini e Suzana Schoellkopf
Fotos: Claudio Etges
Figurinos: Leta Etges
Cenografia: Paulo Azevedo
Música: Laurie Anderson, Meredith Monk, Bach, Jean Michel Jarre, Chopin, Kitaro, Tchaikovsky
Relato do processo de criação do Quem É? da Cia Terpsi Teatro de Dança. Por Silvia da Silva Lopes-Silvia Silva (Nome artístico usado naquele período)
Ao iniciar o relato de como realizamos o processo de criação do Quem É? na companhia Terpsi-Teatro de Dança devo lembrar que tratam das minhas memórias e sensações que guardo no meu próprio corpo até hoje. Assim, enfatizo que são bem particulares.
Foi nesta companhia que me profissionalizei e graças a ela que conquistei tudo o que vivi até hoje e desde já agradeço com carinho à Carlota Albuquerque, diretora e coreógrafa e às colegas e professores.
A companhia era formada por mulheres e Carlota defendia isso. Mas nessa época, foi a terceira obra da companhia, um bailarino foi convidado especialmente para a primeira coreografia: Geraldo Lechner.
Fazíamos aula e ensaiávamos no Terpsi-Teatro de Dança de segunda à sábado em média 6h por dia. Nos sábados, domingos e feriados próximos à estreia e às turnês fazíamos ensaios intensivos o dia inteiro.
Tínhamos aulas de Dança Moderna com Eneida Dreher, alongamento e flexibilidade com Sandra Sachs e Ballet Clássico, com Geraldo Lechner.
Como já anunciado, essa foi a terceira obra da companhia, e foi marcada pela chegada da Eneida Dreher da Alemanha, onde fez aulas de Tanztheater na escola de Folkwang Hochschule, em Essen. Todas as aulas eram importantes, mas reconheço que as suas aulas também influenciaram na dramaturgia do corpo no Quem É? e trabalhos posteriores do Terpsi.
A obra Quem É? foi criada em dois momentos. Estreamos a primeira parte e depois disso seguimos com a criação da segunda parte. Segundo Carlota, a primeira ideia surgiu da obra de Samuel Beckett, Esperando Godot, que trata da espera… da espera de algo que nunca chega e, depois, chamamos de Exercício sobre o medo. Ela nos perguntava: se alguém bate na porta como respondemos? E se for um desconhecido? E se for tarde da noite?
Carlota nos acompanhava tanto nos ensaios nos dirigindo nos processos de criação quanto por vezes, ministrando aulas. Ela trazia proposições de movimentos e nós improvisávamos a partir disso. Repetíamos ou transformávamos e ela ia nos orientando quanto a seleção deles para memorização. Nos orientava também quanto a dinâmica dos movimentos que, ao experimentarmos com a música, por vezes também ocorriam ajustes.
As cenas eram compostas por solos e conjuntos. Alguns conjuntos eram constituídos por uma protagonista e o restante da companhia compunha a cena. A Carlota criava obras completas com a média de duração de uma hora, que era o tempo do Quem É?.
As coreografias eram montadas com a colaboração das intérpretes-criadoras a partir de improvisações, por isso costumávamos dizer que “os solos tinham a cara de cada uma de nós”. Ensaiávamos muito e a Eneida era a nossa ensaiadora, sendo que sabíamos “até quando e como devíamos respirar”. Ao ir dormir à noite, eu ficava contando como no ensaio, e o meu corpo respondia com alguns movimentos como se eu estivesse dançando. Sim, estudávamos cada movimento na música estabelecendo uma contagem.
Ao longo da montagem conversávamos sobre a proposta da obra e das cenas. Carlota dizia que a obra tinha uma perspectiva psicológica: a primeira parte seria o Ego, que trata do “eu” de cada pessoa, o que a caracteriza e a diferencia de outras. Podíamos trazer a nossa interpretação das situações trazidas em cena. Ela iniciava explorando diversas relações e reações nossas (das intérpretes-criadoras) em relação ao que acontecia ou o que pensávamos estar acontecendo atrás de uma porta.
O cenário era composto com várias paredes móveis. Na primeira parte, havia uma porta com tamanho proporcional ao espaço cênico à esquerda e na parte da frente do palco.
Na primeira coreografia Geraldo Lechner dançava junto com Sandra Sax estabelecendo relação com a porta quando Sandra, literalmente, “subia pelas paredes” afirmação publicada em jornal.
A cena seguia explorando movimentos a partir da curiosidade, da expectativa e outros sentimentos bons e de medo, com quatro bailarinas. Eu estava entre elas mas, na mesa, eu comia “sopa” sozinha. Haviam duas coreografias na mesa inspiradas no teatro do absurdo. Na primeira, “pensamentos/acontecimentos estranhos” instigavam reações em mim, que se transformavam em dança. A segunda chamava “A gorda” onde dançávamos de forma que 5 bailarinas compunha a personagem principal com uma parte do seu corpo.
Uma curiosidade para rir um pouco: Carlota pesquisava para produzir um efeito diferente naquela “sopa” combinado com a luz… um dia ela resolveu por “Tang” na água que eu bebia com a colher, e derrubava na medida que os movimentos aceleravam e ampliavam. Ela fez isso logo antes de uma apresentação. Como eu não estava acostumada com suco, me engasguei e, o jeito foi incluir a reação do meu corpo a essa situação (tosse e um pouco de falta de ar) na interpretação da cena.
Movimentos do cotidiano como comer sopa, abrir a porta, empurrar paredes, puxar e empurrar alguém, cair e nos deslocar limitadas por amarras nos tornozelos e mãos eram movimentos que buscavam expressar sentimentos em relação a conflitos internos e externos.
A segunda parte buscava acessar o inconsciente. O que acontece conosco e não é consciente? Pode não ser consciente, mas muitas vezes produz sensações indescritíveis. Carlota trazia referências da Psicologia e eu fiz uma associação com o id e o superego, além de explorar conflitos que eu vivia na época. Nesta, não havia mais a porta do tamanho normal, mas uma gigante, bem no meio palco, no fundo, indicando subjetividades.
Lembro-me do dia em que a Carlota trouxe uma maquete para nos mostrar como seriam as portas e paredes e como elas se moveriam durante a cena. Na segunda parte, dançávamos várias coreografias nas paredes e, em uma delas, a intenção era a de irmos fechando-as. Explicando em outras palavras: na primeira parte as paredes eram postas como cochichos, com espaços uma entre a outra. Quase no final da cena eu fugia (de medo) e me atirava encima da mesa que tinha rodinhas e, com o impulso que eu dava, ela entrava coxia a dentro e a Angela Spiazzi fechava a primeira parede, como que me protegendo.
Eu amava dançar a parte em que, como cegas (usando óculos escuros), tateávamos as paredes até sermos “sugadas” por uma energia que vinha de dentro da porta gigante. Nesta cena também usávamos amarras de gaze nos tornozelos e nas mãos que limitavam, mas produziam movimentos diferenciados e falávamos palavras em grego variando as intensidades. Lembro-me de duas delas: phobos que significa medo e ágape que significa amor. Eu sentia que era a vida me levando para algum lugar que eu não sabia bem onde… me desafiando, me tirando do conforto! Eu era a primeira da fila, que “caía” ao chegar no espaço da porta aberta. Eu adorava!!!! Se a Angela não me segurasse eu cairia mesmo!!!!
Ao longo dos anos de apresentação desta obra, tivemos a substituição de algumas intérpretes criadoras e acabei por assumir o solo da Sandra Sachs, da segunda parte. Porém, ele era tão parecido comigo que não lembro de ter havido muitas transformações. Eu estava em início de carreira, ainda em fase de formação e me encantava com as colegas dançando. Enquanto aguardava a minha vez de ensaiar observava e me desafiava a dançar as partes que elas dançavam também. Quando a Sandra saiu da companhia fui surpreendida com o convite para dançar o solo da segunda parte que trazia sentimentos de uma adolescente, mas não de uma forma representativa.
Havia uma perseguição marcada no tempo da música e, dependendo do tamanho do palco Angela que me perseguia, e eu tínhamos que correr muuuiiitoooo. Até hoje eu tenho as sensações como as daquela cena, quando eu (mulher) ando sozinha a noite… No solo, eu brincava com os movimentos em grande parte realizados no nível baixo. Quando em pé, haviam muitos equilíbrios e um jogo de relação com a porta gigante entre aberta, eles me faziam lembrar momentos vividos naquele período de vida. Eu dançava grande parte deste solo na luz que vinha da porta, que contribuía para uma atmosfera especial.
Depois de estruturadas as cenas nos dedicávamos um bom tempo a cada uma delas trabalhando os detalhes. Carlota citava Mikhail Baryshnikov dizendo que ele nunca “marcava” nos ensaios. E, realmente, ensaiar é também desenvolver-se técnica e expressivamente. Lembro de uma das críticas escritas por Helena Katz. Ela afirmou: “elenco afinado”.
Lembro que, durante o processo de criação, por vezes, quando errávamos Carlota acabava por incluir o erro no trabalho transformando-o assim em cena. Eu percebia que ela aproveitava o que cada intérprete criadora tinha de melhor, suas características e habilidades. Percebia também que ela buscava valorizar todas as integrantes, porém, reconhecendo a importância e desenvolvimento das mais antigas.
A obra alcançou sucesso sendo apresentada em vários estados do RS e na Argentina, recebendo vários prêmios. O Terpsi também teve destaque com seus outros trabalhos, mas deixo aqui registrado que sempre houve uma difícil luta por patrocínio. No trabalho na Cia todas nós nos doávamos por inteiro, dançávamos por amor, mas ministrávamos aulas para podermos nos sustentar.
Citei alguns nomes no texto, mas registro também a participação da Leta Etges, Suzana Schoellkopf, Lourdes Laybauer, Betina Alves, Cintia Pequena, Cintia Flach, Luciane Coggiola e Cláudia Schwartz.
Logo que sentei para escrever este relato ele tinha somente duas páginas e, depois disso, cada vez que eu lia, lembrava de mais sensações e informações. Eu poderia detalhar e até mesmo dançar outras cenas, pois tenho guardadas em meu corpo e memória. Esse período foi marcado com muitos aprendizados e o guardo com carinhosamente, sempre com vontade de dançar e aprender sobre dança mais e mais.